sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Borbulências

Foi quando ele se determinou, sentou na cadeira em frente ao computador já ultrapassado e começou a escrever as primeiras palavras. Ele nunca se aprova, nunca. Falta enredo, falta início, falta meio, falta fim. Falta. Às vezes falta ele mesmo. Inspiração falta sempre. Falta alma, fala tão convicto da inescapabilidade do fracasso do homem mas não se conforma em ser assim tão fracassado. Ele tenta se salvar, todos os dias: pensa muito, monta esquemas, nasce, renasce, ressucita e se reinventa, constrói e destrói vidas em 40 minutos dentro de um coletivo qualquer mas nada se concretiza. Talvez ele mesmo não seja concreto, talvez seja apenas uma imaginação de si mesmo, o ser concreto de uma coisa pensante.

Lá fora venta de leve. O céu róseo da noite escura, as núvens poluídas tão claras ao escurecer, chega acompanhado dos ecos do ensaio da escola de samba. Essa batucada nem devia ser chamada samba! É preconceituoso, metódico, chato. Quem não é?

Ele escreve, escreve na tentativa inútil de arrancar o coração e lançar ao monitor, como se colocar o coração sobre o teclado fizesse com que o livro ou o conto ou o verso se construíssem automaticamente. E ele diz que não quer ser máquina. Rá! Quanta bobagem.

Levantou, acendeu o cachimbo, colocou a cerveja na taça. Eram 3 da tarde e ele jurava que dalí viria a inspiração que lhe faltava. Mas não. Fez café: que cheiro delicioso!, mas não. Sabe, nessas horas tudo o que é externo se manifesta tão imaterial, chamaria de idéia, mas isso não tem tanto valor assim, digo, o que é externo.

Idéia é o que se precisa, idéia é o que não se tem. É tanto esforço necessário que a preguiça vence e amanhã o dia acordará em remorso. Talvez sua frase mais desconexa fosse se tornar célebre, espera que antes da morte. Mas ele vive assim mesmo, na esperança de ser convidado a ganhar dinheiro publicando semanalmente numa revista cultzinha. Era como o João Ninguém, metade burguês e metade comunista, defensor do orgulho suburbano e amante do estilo zona sul de ser. Fala de si tão cansado de falar de si e acaba escrevendo de si. Justifica: “Só posso falar de mim, é só o que eu sei”. Coitado. 

“Viver é esforço, amigo, paciência! Dói assim mesmo, deve-se construir.” Cospe sua doutrina todos os dias, invariavelmente. E vai vivendo pela lei tentando se fazer melhor. Puro paradoxo ou só contradição mesmo? Tem quase certeza de que vai morrer sem saber.

Sim, era sobre o texto. Texto pede leitura, que pede escrita, que pede leitura, que pede desejo, que pede prazer, que pede satisfação, que pede leitura. Mente circular, às vezes nem sabe o que está falando mais. Será assim tão difícil se encontrar? E ele culpa seu anseio pela Eternidade. Será que ela chora?

Já amou uma vez, ou duas, ou três, ou nunca, não sabe, pensa que não se pode saber esse tipo de coisa. Como explico mesmo essa metafísica? O homem é pequeno demais, fé em criatura tão fragilzinha é pros tolos. Mas seu Deus ele não sabe expressar pra ninguém. Mas não era um parágrafo de amor? Ah, mas ele não sabe também.

Queria compor como Chico, tocar como Mingus, escrever como Clarice, sempre quis ser um gênio. 

“Mas quantos deuses cabem mesmo dentro de você?”

Domingo. É o fim. Não gosta de finais, sabe? Mórbidos, pressupõem o fim da eternidade, amanhã o mundo roda de novo e os seus sonhos só poderão se realizar na semana que vem. De segunda a sexta é máquina, só é gente aos fins de semana. Na sexta é a transição: é bom sentir-se novamente.

Já quis escrever uma carta de amor pra sua ex. De amor incondicional, amigo, cristão. Só queria ser entendido por ela, e por todos, óbvio.

Memórias transitam pelo corpo inteiro, tendem a se reunir no coração, área de lazer dos funcionários. Vai todo mundo pra lá. Às vezes sufoca, quase não cabe.
Quis escrever um poema e finalizar assim:

Miserável homem que sou, quem me livrará deste corpo de morte?
E dessa mente, quem me pode livrar?
Sou inimigo de mim, carrasco do meu próprio eu.
Sabe, já amei um dia ou dois ou três. 
Quem disse que naquele momento só o que houve não foi amor?

Desistiu, não queria desse jeito. Foram 5 minutos ou 5 mil anos? Não importa, as folhas ainda estão em branco.

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