O som é
Marvin Gaye. Rio de Janeiro, 23 de Junho de 2013. Ano de expectativas
particulares e universais, primeira semana após a explosão de
manifestações que despertou o povo brasileiro inteiro pra sua
participação na política nacional. Uma vitória, inúmeras
divisões e a esperança dos coerentes de que um ponto comum e
saudável seja alcançado e todos marchem por ele até o fim.
Particularmente, penso sobre amores, trabalho, dores, prazeres,
Europa. No fim das contas resta o questionamento de se, bem no fundo,
não é só sobre isso que pensam todas as pessoas do mundo.
Rio de
Janeiro, 20º? Tá por aí. Dia nublado raro, dois dias depois do
início do inverno. De uns tempos pra cá espera-se sempre um verão
cada vez mais quente e um inverno cada vez mais frio. Quais as
possibilidades de nevar no Cristo Redentor? Ia ser uma visão bacana.
Mas isso é devaneio de quem tem o privilégio de morar pra além do
Centro. Aqui, espero a neve sobre os barracos do Complexo do Alemão,
o contraste com o teleférico do conjunto de favelas, a reclamação
sobre a falta de agasalhos pra esse frio no ônibus lotado em meio ao
trânsito parado no viaduto de Benfica. Fica sempre a dúvida se as
pessoas ignoram a beleza do cotidiano em que vivem ou se elas estão
tão inseridas nele que são, elas mesmas, a própria beleza de tudo.
Domingo,
dia Cristão do Senhor. Admiradores do Papa a essa hora já almoçam
com suas famílias, pastores correm pra casa a fim de chegar a tempo
ao culto da noite e os padres, bem, dos padres eu não sei o que
dizer, só que às vezes gosto muito mais deles. Será que Cristo via
os dias em cores diferentes? “Ah, segunda-feira é dia de trabalho
árduo. Terça-feira é dia de Jejum, à noite tem reunião de oração
na casa do Levi, quem não for vai perder a benção! Ó, nem sai da
cama no Sábado pra não pecar contra O Senhor, hein, Pedro! Aí
pessoal, Domingo tô ressucitando, te espero lá! #PartiuInferno”
Quase tão difícil de imaginar quanto ver o mesmo cara que diz ter
jugo suave e fardo leve quebrando mesas e jogando mercadorias pelo
chão do Templo. Ora, um cara que faz colheita pra matar a fome num
Sábado judeu não profana a santidade do dia, mas expande essa
santidade pra todos os outros dias e todas as demais obras. Mas isso
é devaneio sem fim, melhor guardar o pensamento pra não confundir
ninguém.
Hoje
escrevi no facebook sobre impossibilidade de falar do Evangelho prum
cachorro. Agora imagina a cena: você sentado no chão, no meio da
rua, com folhetos evangelísticos na mão falando da cruz pra um
vira-latas preto, com a língua pra fora. Mas sabe, no fim das contas
nada disso vale a pena discutir. Peco contra minha própria convicção
quando me presto a discutir sobre isso em vez de ignorar e continuar
vivendo.
Temas no
pensamento voam como palavras aladas. Devanear deitar na grama no fim
da tarde e olhar as nuvens, acompanhar o devir das formas, imaginar
as possibilidades e deixar tudo se desfazer com as gaivotas que
migram pra qualquer lugar. Devanear é admirar a beleza do caos
dentro de si, é ver solto e desordenado tudo aquilo que nos compõe
de verdade. Devanear é se deixar conhecer por si mesmo, é o
infinito que só a gente mesmo pode ver e só compreende quando a
finitude exterior permanece em seu lugar de origem. Devaneio é auto
conhecimento, é liberdade interior que de nada depende para se
afirmar, sem ponto de apoio em que se sustentar. Devaneio é instante
de liberdade. Quantas vezes fomos livres hoje?